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quarta-feira, 21 de abril de 2010

Uma história da leitura- Alberto Manguel

Ler as letras de uma página é apenas um dos disfarces da leitura. O astrônomo lendo um mapa de estrelas que não existem mais; o arquiteto japonês lendo a terra sobre a qual será erguida uma casa, de modo a protegê-la das forças malignas; o zoólogo lendo os rastros de animais na floresta; o jogador lendo os gestos do parceiro antes de jogar a carta vencedora; a dançarina lendo as notações do coreógrafo e o público lendo os movimentos da dançarina no palco; o tecelão lendo o desenho intrincado de um tapete sendo tecido; o organista lendo várias linhas musicais simultâneas orquestradas na página; os pais lendo no rosto do bebê sinais de alegria, medo ou admiração; o adivinho chinês lendo as marcas antigas na carapaça de uma tartaruga; o amante lendo cegamente o corpo amado à noite, sob os lençóis; o psiquiatra ajudando os pacientes a ler seus sonhos perturbadores;o pescador havaiano lendo as correntes do oceano ao mergulhar a mão na água; o agricultor lendo o tempo no céu - todos eles compartilham com os leitores de livros a arte de decifrar e traduzir signos.

Sampa- Caetano Veloso

Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas

Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João

Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E a mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes

E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vende outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva

Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mais possível novo quilombo de Zumbi
E os novos baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa

Tecendo a manhã- João Cabral de Melo Neto

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

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E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

domingo, 18 de abril de 2010

O Museu da Língua provoca seus visitantes ao explicar a lógica por trás dos erros de português (Guilherme Bryan)

A ideia é provocadora e reflete um debate bem atual. Em cartaz desde 16 de março no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, a exposição "Menas: o certo do errado, o errado do certo", tem a proposta manifesta de homenagear a variante popular do idioma no Brasil.
A exposição, que fica no museu até 27 de junho, começa na estação de metrô Luz, onde cerca de trinta banners trazem frases com os chamados tropeços comuns no português falado no Brasil, de "A nível de língua, ninguém sabe tudo" a "Ele vai vim para a festa". O objetivo é fazer o visitante refletir sobre a normatização na língua, antes mesmo de chegar às dependências do museu.
Lá dentro, sete instalações convidam o visitante a lidar sem preconceito com as formas em uso no português brasileiro. O próprio título da mostra soa como provocação, brincando com a variante do advérbio "menos", por princípio invariável.
- A exposição, de maneira divertida, mostra por que saímos do padrão culto muitas vezes sem nos darmos conta - explica Antonio Carlos de Moraes Sartini, diretor do museu.
Segundo Sartini, o objetivo é mostrar que os brasileiros "não falamos nem mais nem menos fora do padrão culto que italianos, americanos e franceses", e todo idioma tem variações que são usadas em certas situações e para diferentes públicos.

Adequações
Um dos curadores, Eduardo Calbucci considera que a exposição dessacraliza o idioma e o espaço institucional em que ele é exposto:
- A exposição valoriza a linguagem popular e leva-a para o espaço sacralizado do museu. Mostra que a competência linguística está em saber transitar pelos diferentes níveis linguísticos, da situação extremamente culta à mais popular. Em vez de estigmatizar o erro, convidamos o visitante à reflexão - diz Calbucci, doutor em linguística pela USP e coautor de gramática, texto, redação e literatura do Sistema Anglo de Ensino.
Ao entrar no espaço de 450 metros quadrados do museu, dedicado às exposições temporárias, o visitante se vê num jogo de espelhos, a instalação "Óculos", que simula a sensação de bagunça. Em seguida, um painel de 3 metros de altura por 12 metros de largura traz os "100 erros nossos de cada dia", cada um explicando a motivação estrutural de construções linguísticas socialmente condenadas.
A motivação confessa foi explicar as ocorrências do português, quando não para repará-las, revelando sua incongruência, ao menos para entendê-las, justificando sua existência. Em ambos os casos, os curadores mostram que a forma popular tem sua lógica e pode ser adotada pelo registro culto, pois a língua é "criativa em seus erros". Tanto que há formas hoje consideradas certas ou erradas que já foram o contrário no passado.
- Entre as expressões hoje consideradas corretas, mas condenadas anteriormente, está a construção com o pronome "se", de "Alugam-se casas". Ele atravessou várias mudanças, como a perda progressiva do traço de pessoa, o que explica a construção "Não se víamos há tempos"; e a perda da função apassivadora, o que leva à reinterpretação do substantivo que se segue ao verbo, como seu objeto direto e não mais como sujeito. O conjunto assume, então, nova função, a de indeterminador do sujeito. Assim, a sentença é hoje entendida como "Alguém aluga casas", e não mais "Casas são alugadas" - explica Ataliba T. de Castilho, também curador da exposição, professor titular de filologia e língua portuguesa da USP.

Jogos e vídeos
O caráter lúdico da exposição é objeto de instalações como o "Jogo do Certo e do Errado", em que o público deve escolher aquela que lhe parece mais adequada entre quatro alternativas e, em seguida, descobrir quantas pessoas optaram pela mesma resposta. Em seguida, na instalação "Biblioteca de Babel", há textos de escritores e compositores, de Gregório de Matos a Caetano Veloso, com formas inesperadas da língua.
- Toda língua natural é dinâmica e o português brasileiro aí se enquadra. Quando a sociedade passa por transformações rápidas, como o Brasil atual, acelera-se a mudança de sua língua - garante Ataliba.
Para ele, a instabilidade social brasileira torna natural que formas de uma variação do idioma se desgarrem e migrem para outra.
- A exposição mostra que o português está sujeito a um conjunto de variações, no tempo (arcaico, clássico ou contemporâneo), no espaço geográfico (brasileiro, europeu ou africano) e social (formal ou informal) e na escolha do canal (falado ou escrito). O que queremos mostrar é que um falante proficiente joga com todas essas variações, constituindo-se numa espécie de poliglota na própria língua - diz Castilho.
No vídeo "Norma, a Camaleoa", a atriz Alessandra Colassanti, filha dos escritores Affonso Romano de Sant'Anna e Marina Colassanti, encarna quatro eixos de estudo da língua: gramatical, lexical, semântica e discursiva. O passeio termina num corredor estreito onde, na instalação "Janelas Abertas", observa-se como é o linguajar praticado numa rua de comércio popular.
O título e a ideia de "Menas" são do secretário de Cultura do Estado de São Paulo, João Sayad. A iniciativa foi pensada com cuidado. O diretor do museu, Sartini, defende o espaço dado à variante popular.
- Trabalhar com um conceito simplista de certo e errado seria trabalhar com um museu de exclusão, e esse jamais será o nosso caso. Aqui trabalhamos com a identidade de um povo que usa o português no seu dia a dia, que sonha em português - defende ele.
O Museu da Língua Portuguesa confirma a ideia de que valorizar o idioma é, antes de tudo, apresentar sua riqueza de possibilidades.

"Eros e Psique" por Fernando Pessoa

http://www.youtube.com/watch?v=ORbyqzaKJKs&feature=related

Retrato

"Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?"

Cecília Meireles